Giacomo Geremia nasceu em San Martino di Lupari, região do Vêneto, na Itália, em 1880. Os seus pais, Antonio e Regina, eram agricultores, tendo emigrado para o Brasil em razão da crise econômica e social pela qual passava o país peninsular nas últimas décadas do século XIX. Chegados como imigrantes ao estado do Rio Grande do Sul no ano de 1892, a família dos Geremia recebeu um lote colonial na localidade de Antônio Prado.
Desde criança, Giacomo ajudava os pais e irmãos no lote colonial da família e em outros trabalhos destinados aos colonos, como a construção de estradas. Descontente com essas obrigações decidiu fugir de casa, partindo sozinho para a capital Porto Alegre, onde conseguiu um emprego como torneador em uma fábrica de móveis. Tinha 12 anos de idade.
A técnica da fotografia, Giacomo aprendeu com um fotógrafo imigrante italiano que atuava como itinerante na região dos Campos de Cima da Serra do RS. Por problemas de saúde (era portador de bronquite asmática), Giacomo havia se transferido para um município dessa região (Vacaria) por recomendação médica quando tinha 18 anos de idade – acreditava-se que o clima da Serra ajudaria a minimizar os sintomas da doença. Segundo recorda um dos filhos de Giacomo, Ulysses Geremia, esse fotógrafo com quem seu pai aprendeu a fotografar utilizava, na época, chapas de vidro emulsionadas com colódio úmido, substância que precisava ser despejada sobre o suporte fotográfico poucos minutos antes deste ser inserido na câmera para a tomada de uma cena.[i]
Anos mais tarde, retorna a residir em Antônio Prado (RS), Em 1909, neste município, Giacomo casou-se com Ida Zacchera. Cerca de dois anos depois, transferiu sua residência para a cidade de Caxias do Sul (RS), onde instalou seu atelier fotográfico na Avenida Júlio de Castilhos, a uma quadra da Praça Dante Alighieri (região central). Pouco tempo após a inauguração do estabelecimento, através do jornal Cidade de Caxias, de 09 de dezembro 1911, o fotógrafo anunciava: “Atelier Geremia (Defronte ao Café Marconi – Caxias). G. Geremia, photographo, encarrega-se de tirar retratos por qualquer systema, garantindo perfeição e nitidez. Retratos a crayon em todos os formatos apropriados para ornamentos de sala de visita etc. Neste atelier executa-se a Bromuro-Platina que é o mais moderno e artístico e de uma durabilidade eterna, quasi todos os trabalhos concernentes ao ramo. Grande e lindo sortimento de cartões postaes. Vistas de Caxias.”[ii]
Em 1915, através do jornal O Brazil, do dia 24 de julho, o “Atelier Photographico Geremia” anunciava ser dotado de “material todo novo e moderno”, sendo “especialista em grandimentos”, “retratos em medalhas, esmalte, etc.”, e convocava a potencial clientela que fizesse uma “visita à vetrine” para conferir os “preços rasoaveis” que praticava.[iii]
Através desses anúncios em jornal, percebe-se que o atelier de Giacomo Geremia usufruía de materiais fotográficos de qualidade superior em comparação com os estabelecimentos de mesmo gênero instalados no município na mesma época. Os trabalhos em “bromuro-platina” anunciados pelo Atelier Geremia referiam-se a um papel fotográfico especial, importado da Alemanha e adquirido por Giacomo em Porto Alegre. O papel possuía duração mais longa em comparação com o papel albuminado, amplamente utilizado por outros fotógrafos locais. Todavia, era um material mais caro, facultando o seu consumo a uma clientela específica. Já os “grandimentos” anunciados pelo estabelecimento, eram relativos ao serviço de ampliação das fotografias para a confecção de quadros que serviriam para a “ornamentação de salas de visita”.
Esses quadros, a serem expostos do mesmo modo que foi comum ao retrato pictórico (ou seja, como obras de arte), eram retocados através de diversas técnicas por funcionários contratados do atelier. Em 1918, o jornal Cittá de Caxias, do dia 1º de outubro, noticiava uma “attrahente exposição de retratos”, no “acreditado atelier photographico do nosso amigo Giacomo Geremia”, confeccionados “a óleo, crayon e pastel”. Na ocasião, os visitantes e clientes puderam apreciar “um fiel retrato, em tamanho natural, do benemérito Intendente, Cel. Penna de Moraes”, trabalho este em que se destacavam “todos os traços da physionomia do prezado Intendente” e que, por isso, era “digno de ser exposto em qualquer exposição de Grandes Capitaes”. Todos os retratos expostos haviam sido executados “pelo hábil pincel do insigne artista Sr. Alexandre Kenige (então funcionário do estabelecimento, mais tarde fotógrafo estabelecido com seu próprio atelier no município)”.[iv]
Em uma imagem do interior do estabelecimento, datada da década de 1940, é possível ver dois funcionários do Atelier Geremia trabalhando no retoque de negativos e provas fotográficas.[v] Um desses retocadores, diante de um quadro, é visto executando a técnica, provavelmente a crayon, em um retrato do então prefeito Dante Marcucci, condutor das obras de urbanização de Caxias. Prefeito este, na lembrança do filho de Giacomo, “muito amigo do meu pai, com quem sempre trocava opiniões sobre o progresso da cidade”.[vi]
Entre os anos de 1935 e 1947, período em que assume a identidade de Studio Geremia, o estúdio fotográfico foi o principal responsável por documentar as obras de rebaixamento, pavimentação e abertura de ruas e avenidas da cidade de Caxias do Sul, ocorridas durante a administração de Dante Marcucci. Estas imagens foram coligidas em dois álbuns fotográficos, intitulados “OBRAS DO ESTADO NOVO – Caxias – Alguns flagrantes da Urbanização e Saneamento”, os quais contribuíram para a construção de uma nova visualidade (moderna) da cidade, na medida em que se optou mostrar a transformação da antiga vila de aspecto bucólico e provinciano em uma cidade asseada, de logradouros e vias públicas amplas, retilíneas e ordenadas – propícias à circulação dos automóveis que, então, começavam a substituir os antigos meios de transporte de tração animal.[vii]
Além do registro das transformações na malha viária da cidade, o Studio Geremia, desde cedo, foi o estabelecimento mais requisitado para fotografar o interior e o processo produtivo das fábricas que surgiam e se desenvolviam no Município de Caxias do Sul. Certamente, o exemplo mais significativo é o da fábrica metalúrgica fundada pelo imigrante italiano Abramo Eberle, a qual contratou os serviços do Studio Geremia por cerca de quatro décadas (entre 1910 e 1950), para a produção de registros fotográficos da sua empresa com a intenção de documentar as evoluções pelas quais passava. As fotos da fábrica de Abramo Eberle foram coligidas em mais de duas dúzias de álbuns fotográficos.
O Studio Geremia era o estabelecimento que mais agradava a burguesia industrial local para o registro de seus empreendimentos por adotar uma linguagem moderna da fotografia (cenas com boa impressão visual, com zonas nítidas e bem iluminadas, além de composições, arranjos e efeitos visuais que enfatizavam o ordenamento e a disciplina para o trabalho, e a relação de dependência entre operário e maquinário), o que vinha de encontro ao processo de modernização da indústria local.[viii]
Entre algumas inovações praticadas na área da fotografia pelo Studio Geremia, deve-se destacar que o estabelecimento fotográfico foi o primeiro da cidade a valer-se de equipamentos de iluminação artificial, fato que ocorreu alguns anos após a chegada da luz elétrica ao Município de Caxias do Sul (instalada em 1913). Antes disso, a iluminação para os retratos de estúdio ficava por conta de uma claraboia construída na edificação ocupada pelo atelier desde 1911. Fora do estúdio, para retratos que precisavam ser produzidos em interiores – como igrejas e escolas, por exemplo –, a baixa iluminação não era um problema: era resolvida com a utilização de um flash primitivo conseguido através da queima do pó de magnésio[ix]. O estúdio também contava com diversos cenários, com móveis e fundos cênicos, alguns destes trazidos por Giacomo de viagens que fazia à Europa – especialmente à Itália. Do exterior, Giacomo também importava revistas e outras publicações referentes à técnica fotográfica, meios pelos quais se informava sobre novos equipamentos e aprimorava o domínio da luz.
O Studio Geremia foi premiado diversas vezes em feiras e exposições estaduais. Em uma litografia do final da década de 1910, utilizada como propaganda do estúdio, o estabelecimento já exibia a conquista de cinco medalhas de ouro, dentre elas a da Exposição do Centenário de Santa Maria (1914) e a da Exposição Regional Agrícola-Industrial de Caxias (1916). Esse mesmo anúncio comunicava o feitio de “trabalhos pelo estyllo mais moderno de effeito artístico”, relacionando, inclusive, a fotografia e a arte pictórica através da imagem de uma câmera fotográfica ao lado de uma paleta de pintura.
Ainda sobre a relação entre fotografia e arte, como é possível ler em um informe comercial publicado em italiano pelo jornal Cittá di Caxias, de 11 de maio de 1916, o então “Atelier Photographico Geremia” dizia-se possuidor do “segredo da verdadeira arte”, o qual se encontraria na “fixação da pose artística” e na “graduação da luz” (o chiaroscuro, afinal): “Atelier Geremia – premiato nell’Esposizione di Sta. Maria. Palazzina própria di fronte al Café Marconi. Via Julho de Castilhos. In questo stabilimento fotográfico, di recente costruzione si eseguisce con la massima perfezione e secondo la vera arte fotográfica moderna, qualunque lavoro fotográfico a prezzi discretissimi. Nella graduazione della luce e nello stabilire la posa artística si contiene il segreto della vera arte. Possiede un salone addobbato con lussuosa e eleganza e panni di fondo veramente artistici. Basta recarsi in questo elegante stabilimento per avere una fotografia naturale e finemente artística. Si vada a provare.” [x].
O Studio Geremia foi uma espécie de “escola de fotografia” para diversos profissionais que atuaram na área após terem tido passagem pelo estabelecimento do “velho Giacomo”, como era chamado. Destacam-se os nomes de Antonio Bartholomeu Beux, Ary Cavalcanti e Mauro de Blanco, alguns que iniciaram como laboratoristas e outros como retocadores no estúdio e, anos mais tarde, montaram seus próprios estabelecimentos no Município de Caxias do Sul.
Giacomo Geremia faleceu em 20 de setembro de 1966, em Caxias do Sul. Mas seu passamento não significou a interrupção das atividades do atelier. Já no início da década de 1930, o filho Ulysses Geremia (1911-2001) passou a trabalhar no estúdio do pai, aprendendo aos poucos os segredos da fotografia, especialmente a “arte do retrato”, segundo a qual, nas palavras de Ulysses, se deve “fotografar a alma da pessoa, o caráter”. Outro filho de Giacomo, Leo Geremia, também atuou no estúdio, como retocador.
Uma parte significativa do acervo do antigo Studio Geremia se encontra depositada no Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami de Caxias do Sul. A Coleção Studio Geremia (composta por mais de oito mil negativos, entre suportes em vidro e em película) foi adquirida pela Administração Municipal de Caxias do Sul em 2002, logo após o falecimento do herdeiro do estabelecimento, Ulysses. Também integram o acervo do Studio Geremia fotografias doadas por diversas famílias locais. Alguns equipamentos fotográficos e cenários do antigo estúdio integram o acervo do Museu Municipal de Caxias do Sul.
[i] GEREMIA, Ulysses. Ulysses Geremia [filho de Giacomo Geremia]: depoimento [ago. 1982]. Entrevistadores: T. Tonet, L. Corsetti, L. Henrichs, J. Dal Bó. Caxias do Sul: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami (AHMJSA), 1999. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida ao Banco de Memória do AHMJSA.
[ii] ATELIER GEREMIA. Cidade de Caxias. Caxias do Sul, 09 dez. 1911.
[iii] ATELIER PHOTOGRAPHICO GEREMIA. O Brazil. Caxias do Sul, 24 jul. 1915.
[iv] PHOTOGRAPHIA GEREMIA. Cittá de Caxias. Caxias do Sul, 01 out. 1918.
[v] Esta fotografia pode ser vista em TESSARI, 2013, p. 78.
[vi] GEREMIA, Ulysses. Op. cit., 1999.
[vii] Esses dois álbuns fotográficos foram estudados em TOMAZONI, Mario Alberto. Álbuns da cidade de Caxias (1935-1947): as reformas urbanas fotografadas. Porto Alegre, 2011. Dissertação (Mestrado em História) – FFCH, PUCRS.
[viii] Sobre isso, ver TESSARI, 2013, estudo desenvolvido a partir da análise de um álbum fotográfico da Metalúrgica Abramo Eberle onde se encontram 80 fotografias produzidas pelo Studio Geremia.
[ix] Conforme um manual técnico de fotografia (HASLUCK, Paul. The book of photography: practical theoretic and applied. London: Cassel and Company, 1907, p. 475-478), a substância do pó de magnésio era acessa com pólvora, podendo, também, ser misturada com clorato de potássio, para provocar um clarão no ambiente e permitir uma tomada rápida, quase em frações de segundo. Em pouco tempo, surgiram lâmpadas com a substância em seu interior, que eram acionadas por meio elétrico através de fusíveis. A lâmpada podia ser usada uma única vez e o seu preço, no início do século XX, não era em conta para a maioria dos fotógrafos. O maior empecilho para aqueles que faziam uso da técnica do flash de pó de magnésio era que a fumaça produzida pela queima da substância era tão intensa que os retratados precisavam esvaziar temporariamente o local logo após o registro fotográfico ter sido feito. Em razão disso, nessa época, geralmente os profissionais preferiam locações ao ar livre para fotografar.
[x] ATELIER GEREMIA. Cittá di Caxias. Caxias do Sul, 11 maio 1916. (Tradução livre: “Atelier Geremia – premiado na Exposição de Santa Maria. Palacete próprio em frente ao Café Marconi. Avenida Júlio de Castilhos. Neste estabelecimento fotográfico, de recente construção executa-se com a máxima perfeição e segundo a verdadeira arte fotográfica moderna, qualquer trabalho fotográfico a preços muito discretos. Na graduação da luz e na fixação da pose artística está o segredo da verdadeira arte. Possui um salão decorado com luxo e elegância e pano de fundo verdadeiramente artístico. Basta vir até este elegante estabelecimento para obter uma fotografia natural e finamente artística. Venha comprovar”).