Coordenador: Milton Guran
A região do golfo do Benim, na costa ocidental da África, constitui um exemplo único de implantação de uma cultura brasileira fora de fronteiras físicas do Brasil. Isto porque os agudás, também conhecidos como “brasileiros”, importante segmento social no Benim, Togo e Nigéria, não podem ser vistos como uma simples uma colônia de imigrantes oriundos do Brasil, a exemplo do que acontece em muitos países. Eles se constituem, efetivamente, em um grupo social que se reconhece com identidade própria, baseada em “origens” brasileiras, e utiliza esta condição para se articular com o conjunto da sociedade.
Esses “brasileiros” do Benim, Togo e Nigéria são descendentes dos antigos escravos do Brasil que retornaram à África no século passado, que utilizaram a memória do tempo vivido no Brasil para reivindicarem a mesa condição social dos comerciantes baianos lá estabelecidos nos séculos XVIII e XIX, e, assim, superarem o estigma da escravidão na própria sociedade que os havia excluído por via do tráfico negreiro. Possuem nomes de família como Souza, Silva, Almeida, entre outros, festejam N. S. do Bonfim, dançam a “burrinha” (uma forma arcaica do bumba-meu-boi), fazem desfiles de Carnaval e se reúnem freqüentemente em torno de uma feijoadá ou de um kousidou. Foram eles que implantaram a cultura ocidental na região, fizeram as primeiras construções em alvenaria, incluindo a primeira igreja católica, e chegaram mesmo a impor o português como a primeira língua ocidental de uso corrente naquela costa africana.
A tal ponto foram culturalmente importantes, que as primeiras escolas criadas pela missão católica francesa, em meados do século XIX, ensinavam em português. Várias palavras portuguesas foram incorporadas às línguas da região. Em fom, por exemplo, garfo é garfou, copo é copo, cama é acama, mesa é tàvo (de tábua), a verruma é barume, chave é càví, bolso é bosù, camisa é camisa, saia é saia, seda é sedà, padre é padri, papa é pàpa, Páscoa é Paskòa, Pentecostes é Pentekoste, o vinho de missa é viù, missa é amissà, Natal é Natà, o ato de confissão católica é konfesáùn, entre mais de uma centena de outras palavras. Aliás, uma simples análise do sentido destas palavras incorporadas porque designavam objetos e fatos desconhecidos basta para dar uma idéia da dimensão da contribuição cultural dos primeiros portugueses e brasileiros à cultura da região. Nesta lista encontramos a designação de móveis e utensílios domésticos, roupas e expressões ligadas à religião católica, em suma, nomes e expressões chaves da cultura europeia que viria a se impor ao país.
Este aspecto é de importância capital, uma vez que a língua de um povo constitui certamente um dos suportes mais completos de seu patrimônio cultural, um sistema simbólico que traduz e ordena a sua percepção do mundo. Ao adotar a língua portuguesa como sua língua de origem, os antigos escravos retornados se colocaram ao lado dos primeiros agudás, o que lhes permitiu explicitar sua diferença face aos outros africanos, procedimento fundamental no processo de construção da nova identidade social. “Quando não se consegue conservar a língua original – explica Manuela Carneiro da Cunha (“Etnicidade: da cultura residual mas irredutível”, Revista de Cultura e Política, v. 1, n. 1, São Paulo, 1979:36) – muitas vezes se é obrigado a construir a distinção a partir de alguns elementos do vocabulário, empregados com a sintaxe da língua dominante.” É exatamente o caso desses “brasileiros” que ao utilizarem algumas palavras em português, muitas vezes já transformadas, nada mais fazem do que exprimir uma espécie de resistência cultural.
O estudo Tradições em movimento: imagens e sons luso-brasileiros na África Ocidental busca registrar os últimos vestígios de língua portuguesa na região do Benim, onde é mais forte a cultura agudá, associando-os através da produção de imagens em vídeo e fotográficas, aos seus espaços sociais tanto públicos quanto privados, tanto ritualizados quanto plenos de intimidade doméstica. Nesses espaços as memórias se atualizam e as tradições são acionadas como forma de garantir a identidade histórica do grupo.
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