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Acervo Trajetórias Docentes

Entrevistado: Lara Ximenes Gidalte
Entrevistador: Memorial - PROFHISTÓRIA
Tipo: história de vida
Duração:
Local:
Data: 04/10/2019
Sumário

Lara Ximenes Gidalte participou do PROFHISTÓRIA (Entrega do memorial – 03/2018)

MEMORIAL

 

 

Valendo-me de uma das muitas concepções de Nicole Loraux, buscarei desenvolver uma “prática controlada do anacronismo” para que eu possa, ao elaborar esse memorial, tentar me manter fiel aos sentimentos que motivaram minha vida no passado, partindo das minhas atuais concepções e questionamentos do presentismo, e assim, nesse movimento estabelecido, tentar compreender ainda mais esse momento exato no qual escrevo o texto.

Por que você ainda insiste na profissão? Você sempre foi tão competente ao longo de todo seu período de estudos no Ensino Fundamental e Médio! Você sempre foi uma das melhores alunas da sala! Seus pais são advogados de sucesso e você escolheu ser professora? Lara, você é muito inteligente, ainda está em tempo de buscar uma nova profissão para a sua vida e sair do magistério! Seus pais sempre sonharam que você fosse se destacar como uma grande advogada. Qual a necessidade de estar ganhando tão pouco? Lara, eu já estou velho, mas se eu fosse você, “sairia fora” de História e começaria um curso de Direito, ou qualquer outra área que você não venha sofrer tanto e possa ser mais valorizada.

Essas e muitas outras perguntas rodeiam meus dias cansativos e corridos ao longo desses últimos meses. Confesso que por inúmeras vezes, permiti e permito, que essa “pressão social” influencie minhas decisões e escolhas pessoais. Estou querendo desistir da profissão. Não tenho vergonha de dizer isso nesse momento. Sou uma ré confessa. Ré de quem? Ré de quê? Sinto-me hoje, acusada por mim e por minhas próprias escolhas e de certa forma paro, perguntando o porquê dessa sensação. Não sei responder, não sei explicar. Não sei apontar a gênese de tudo isso. Só sei dizer que é isso que eu sinto.

No momento atual, me sinto mais livre, me sinto mais eu, mais independente como professora, como pessoa. Algo que sofri muito para construir. Hoje, produzo esse memorial, com todos os anseios e questionamentos que existem dentro de mim, com vontades de “chutar o balde” ou às vezes, com saudades da sala de aula durante as férias. Não que esse memorial venha ser um registro escrito de um processo de autoconhecimento psicológico, mas não poderia falar de uma vida profissional, sem que citasse a compreensão sobre quem eu sou, ou de como me vejo, ou até mesmo de como gostaria que as pessoas me vissem. Esse processo foi e até hoje é, doloroso. Estar seguindo no caminho da História, às vezes me cansa, às vezes me instiga e às vezes me motiva, impulsiona. Por isso estou aqui! Buscando voltar nos anos passados e lembrar de cada pedaço que contribuiu e ainda contribui para a confecção desse mosaico chamado eu. Pedaços de cacos, de cores, de dores, de sonhos e de amores.

As aulas do ProfHistória têm possibilitado um processo de autoanálise muito grande em minha caminhada educacional. Diante de uma série de questionamentos quanto à escolha da minha vida profissional, das minhas vontades de fuga e desistência, o mestrado em Ensino da História me trouxe para o lugar de onde eu sempre quis fugir, nos últimos tempos – a sala de aula. Todavia, é como se uma cortina, ou até mesmo, escamas começassem a cair dos seus olhos quanto à seguinte questão: o problema da minha vida profissional, não é a Educação em si, mas a forma como eu devo e posso enxergá-la. As aulas que tenho tido até hoje, mudaram a minha forma de pensar como professor. Trouxeram mais ânimo a uma vida profissional tão cansada e sem grandes expectativas. Nos últimos dias, a autoanálise tem sido feita muita mais na didática que utilizo em sala de aula, na forma como meus alunos enxergam e recebem as aulas, no meu desempenho como professora da disciplina. O ProfHistória entrou na minha vida e está transformando a professora Lara Gidalte que existia até então.

O interesse pelo mestrado profissional em Ensino da História começou no ano de 2015, partindo de pesquisas sobre possíveis mestrados na área. O foco nunca foi pelo fato do mesmo ser um metrado com ênfase no professor e seu papel desempenhado em sala de aula. Meu objetivo era somente encontrar um mestrado, para “encorpar” meu currículo, e garantir maiores possibilidades para ingresso no mercado de trabalho. Não me dediquei nos estudos para o processo seletivo, encarava o mesmo como mais uma possibilidade e não A possibilidade. Quando saiu o resultado, fiquei até mesmo, surpresa, mas ingressei nessa nova fase sem muitas expectativas.

Nos últimos anos comecei a me questionar: Será que estou fazendo da forma correta? Minhas aulas poderiam ser melhores? Esta prática de falar sobre a matéria em sala de aula, ler o material didático, passar fichamentos dos capítulos, atividades de revisão, filmes sobre as disciplinas, etc., tudo isso não está sendo cansativo para o aluno? Comecei a questionar minhas ações em sala. Venho de um período de oito anos em uma mesma escola, nas mesmas turmas e com os mesmos conteúdos. Isso estava causando certo comodismo na minha vida profissional. Desde que voltei de Minas Gerais, em 2011, venho em um ritmo de trabalho incansável, movido pela onda do “trabalho = dinheiro”. Todavia, esse sentimento começou a me causar muita inquietação a partir de 2014, após o término de uma especialização na UERJ.

Em 2013, ingressei na pós-graduação latu sensu em História Antiga e Medieval pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, junto ao Núcleo de Estudos da Antiguidade – NEA. Foi uma experiência muito sólida, visto que tive acesso a um material teórico que não havia tido desde a época da graduação. As aulas, os amigos e companheiros de estudo, todas as exigências e tarefas da Profa. Maria Regina Cândido, contribuíram para minha formação acadêmica. Comecei com o interesse em trabalhar com os cristianismos primitivos na Roma Antiga. Essa temática me permitiu o acesso a pessoas que jamais imaginava, como o professor André Chevitarese, Daniel Justi, Junio Cesar Rodrigues Lima, Lair Amaro, Pedro Paulo Funari, Cláudio Carlan, Marici Magalhães – com todo seu amor pela numismática, entre outros. Todos eles, de forma muito particular e especial, contribuíram para que eu me tornasse uma professora com mais amor pela História. Assim, segui o caminho da pesquisa buscando abordar sobre uma análise do contexto social, político e religioso da cidade de Corinto no século I E.C., fundamentando os estudos sobre as relações de gênero estabelecidas no interior das comunidades cristãs ali existentes, mediante os dados históricos oferecidos através das descrições textuais contidas no documento conhecido como I Coríntios, uma epístola escrita por Paulo de Tarso, endereçada a essas comunidades.

Há cinco anos, me mudei para a cidade de Santa Luzia, próximo à cidade de Belo Horizonte, para cursar Teologia. Um dos fatores motivadores para ter largado tudo – relacionamento, concurso público administrativo, magistério em uma escola e família – foi, certamente, esse sentimento de “tentar se encontrar”, em todos os sentidos possíveis, não somente no âmbito espiritual, mas no profissional. No seminário, acreditando que sairia dali uma grande cantora, deparava-me com meus amigos afirmando que eu deveria ser pastora e professora de seminário. Durante as aulas de algumas disciplinas, costumávamos fazer grupos de estudos e eu, sempre ficava encarregada de ser a mediadora das discussões propostas. Ou seja, mesmo como aluna, a dádiva do ensino não me deixava, mesmo que às vezes eu quisesse. Foi um tempo muito difícil, distante de minha família e amigos. O curso duraria dois anos, entretanto, no final de 2011, decidi que não daria prosseguimento a esse projeto traçado, por uma série de questões. Assim, em 2012, voltei para minha cidade, e decidi recomeçar, em sala de aula.

Depois de formada, a partir de 2009, voltei para a Escola na qual eu estudara desde o 4º ano do Ensino Fundamental, só que naquele momento, como professora. Confesso que hoje, tentando escrever esse texto, não consigo lembrar bem das motivações e situações as quais vivi nesse período recém-formada. Lembro-me que entrei como professora de História e Filosofia das turmas de 5º ao 8º ano. As minhas primeiras experiências em sala de aula foram construídas pelo meu próprio caminhar, até porque as disciplinas didáticas e pedagógicas que tive durante o período da faculdade não foram muito sólidas e produtivas. Assim, ao longo do tempo, fui desenvolvendo minha própria didática e minha postura como professora. Extremamente insegura, ficava muito presa ao material didático, com leitura e execução de atividades propostas. Não me sentia segura nem mesmo para passar um filme ou documentário. Com um tempo, toda essa insegurança foi se transformando em algo mais forte e sensível. Dar aula começou a ser meio que uma necessidade. Nas férias, eu sentia falta da sala de aula e dos alunos.

Saindo da Universidade, recebi o convite da diretora do Centro Educacional Batista para que eu lecionasse a disciplina nas turmas do Ensino Fundamental. Ali, os meus professores eram agora, meus companheiros de trabalho. Uma experiência sensacional, até porque, a professora que servira de motivação para meu ingresso na área agora era minha parceira. Foi muito gratificante voltar à casa que foi a base para minha formação educacional.

Em 2006 ingressei no curso de História da Universidade Veiga de Almeida, em Cabo Frio. Na época, como eu havia passado no concurso público do meu município, busquei conciliar o trabalho de oito horas por dia com um curso noturno. A Prefeitura de Casimiro de Abreu disponibilizava transporte gratuito para os alunos que estudavam em outros municípios. Por três anos, minha rotina diária começava às 08 da manhã, trabalhando em uma Escola de Música, com uma pequena pausa de uma hora para almoço, saindo direto do trabalho as 16 h, seguindo em um ônibus universitário para Cabo Frio, chegando em casa às 00:00 h. Lembro-me que na Faculdade, meu maior interesse era pelas disciplinas que abordavam sobre política e cultura na contemporaneidade, tanto que, meu trabalho de conclusão de curso seguiu na linha da análise dos Serviços Secretos de Informação das Forças Armadas, ligados ao SNI – Serviço Nacional de Informações, durante os primeiros anos do Regime Militar.

Em 2004, ainda no 3º ano do Ensino Médio, fiz um concurso público para a Prefeitura de Casimiro de Abreu. Ingressei como auxiliar administrativo. O trabalho no órgão público me permitiria receber um salário e cursar uma faculdade próxima a minha casa. Não que eu precisasse trabalhar para me manter, até porque minha família sempre teve boas condições financeiras. A questão era mesmo pessoal. Ficar na cidade, medo de sair de perto dos pais e insegurança para enfrentar a “cidade grande”. Assim, em maio de 2005, fui convocada para trabalhar como funcionária pública do município.

Durante o período em que estava no 3º ano do Ensino Médio, eu não tinha nenhuma noção do que iria fazer do meu futuro profissional. Tive um relacionamento com um professor de Matemática que, confesso, foi um dos que mais me estimulou a fazer uma Licenciatura, contrariando inclusive, a vontade dos meus pais – acredito que não aceitam muito bem, até hoje, essa escolha. Como estava apaixonada, não querendo morar distante, segura em um concurso público e temerosa de ampliar os meus horizontes, optei pela Licenciatura em História, próximo de casa. A escolha por essa disciplina era em virtude do meu gosto por leitura, pela área das humanas e sociais – que particularmente sempre me atraíram, e pela inspiração de uma professora que eu tive, chamada Rosilane Miranda.

Todavia, ao longo do Ensino Médio, uma das possibilidades que passavam pela minha cabeça era o jornalismo, como primeira opção. Eu tinha o sonho de viajar o mundo, como a Glória Maria, fazendo reportagens sobre os mais diversos cantos do planeta. Até hoje, sou uma apaixonada nata pela diversidade de culturas, lugares exóticos. Com certeza, gastaria todo o dinheiro que viesse a ter, somente com viagens. Como segunda opção, ou até mesmo primeira, dependendo dos meus dias e do meu humor, o curso de Direito era sempre pensado. Meu pai, sendo um advogado criminalista, sempre me incentivou a seguir na carreira. Minha mãe cursou Direito, entretanto, optou por seguir carreira como funcionária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Ambos me incentivavam muito a seguir na carreira.

Confesso que, hoje, se eu pudesse voltar no tempo, não teria feito História. Amo a História e todo o mundo que ela me oferece. Entretanto, pensando em uma vida com maior “sucesso” financeiro, menos trabalho em casa, menos estresse com alunos, atividades, coordenações pedagógicas, cursaria História como um “a mais”, uma complementação, um “hobby”.

Não tenho muitas lembranças da minha vida escolar nos anos do Ensino Infantil e Médio. Só sei que até a 3ª série do Ensino Fundamental, eu estudava na Escola Estadual Casimiro de Abreu, o único Colégio Estadual que existia no município, onde todos se encontravam e se conheciam. Uma época da qual sinto muita falta. Falta do pé de amora do canto do muro, próximo ao portão da entrada de carros. Ali, fiz grandes amigos, grandes irmãos. Época daquelas professoras que a gente quer levar para casa, que a gente chama para os aniversários e que manda bilhetinhos e lembrancinhas semanalmente.

Minha família é “da terra”. Meus pais nascidos e criados em Casimiro de Abreu, meus irmãos e eu também. Somos três, com 10 anos de diferença de um para cada um: eu com 29 anos, meu irmão Ramon Peres com 19 e a temporã Ana Luísa com 9 anos de idade. Somos filhos de duas pessoas que sempre lutaram na vida na conquista pelos seus objetivos. Meu pai saiu de casa para estudar em Volta Redonda, logo após terminar o Colegial. Assim como eu, sonhava em cursar jornalismo. Certo dia, voltando de Volta Redonda, disse para minha avó que não queria mais cursar Direito. Diz meu pai que no mesmo ônibus que veio, minha avó, com um chinelo na mão, o fez voltar e se formar advogado. Minha mãe, nascida na Cascata – vilarejo pertencente à Nova Friburgo, teve oportunidade de morar em Casimiro de Abreu, onde muito cedo, aos 21 anos e sem nenhum planejamento, engravidou do meu pai e constituíram família. Muito esforçada, cursou Direito sendo eu ainda muito nova. Prestou concurso público e da família materna, é a única que hoje em dia tem uma formação e uma vida economicamente estável.

Por fim, esse memorial começa e/ou termina, com uma menina nascida em Casimiro de Abreu, uma cidadezinha do interior do Estado do Rio de Janeiro, com aproximadamente 40 mil moradores, onde todo mundo sabe de tudo e de todos. Neta do famoso Seu Gida, ferroviário da cidade, e de uma das mulheres mais belas de Casimiro na década de 30; também do seu Coelho e de Dona Telma, trabalhadores da roça na região da Cascata, próximo à Friburgo, descendentes dos imigrantes espanhóis ou portugueses que se fixaram na região serrana do Estado do Rio em meados do século XIX.

Como em toda análise histórica sobre algum personagem, é imprescindível que o conceito de “lugar” seja levado em conta, até porque, você não é Lara, José, Carlos, Abigail e etc, fora do espaço geográfico no qual está inserido. Por que essa afirmativa? Talvez, eu não seria essa Lara se não morasse em uma cidade como Casimiro de Abreu. Fora as dificuldades e limitações que uma cidade do interior te oferece, Casimiro é uma cidade linda, que carrega o nome de um dos grandes poetas brasileiros do século XIX, repleta de história em todos os cantos, com paisagens belíssimas, cachoeiras, praias encantadoras e uma geografia privilegiada. Uma riqueza para qualquer historiador se aprofundar, se deliciar e construir a sua própria história de vida, o seu próprio memorial.

 

 

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